A mãe chegou no quintal da casa, livrou-se do fardo
de lenhas, restou o peso da filha que ainda carregava na barriga prenha.
Sentou-se prenha de alma de dor e dor de não saber quando seria o parto da
falta de esperança do fim da dor infinda.
Acendeu o fogo com gravetos da última leva,
esquentou a sopa, sobra da janta, com perplexidade da lembrança de saber-se sem
dor ao fugir com o amor que a desprezara de sobra. Engolia o choro e ele descia
goela abaixo com o caldo quente para a filha, sobra de sonho, com dor de solidão
e do nada.
A filha sobra no físico, no viver e no doer,
desejando sobrar na própria realidade para refugiar-se da dor de sobra da
história lenhada, indiferente de ser e de amar.
Vem-lhe dentro da bolsa o líquido da sopa e do choro
diluídos no amargo veneno do ser desprezado e descrente que a carrega. Aquela
estufa líquida espuma com a sobra da dor. Sorve, então, goela adentro,
frenético meio de sobreviver, o caldo quente da mãe, sobra do desaconchego e do
chegar indesejado.
Filha e mãe, sobras de amor, deglutem a sobra das
dores mútuas, procurando aliviarem-se, gemendo-se para consolarem o enfastio de
carregar e ser carregada.
Em dado momento, a mãe não consegue deglutir mais o
líquido quente, passando a lutar com os vômitos das sobras puxando da filha o
desconforto de ser, irremediavelmente, a dor instalada, irreversivelmente em
sobra. A tal ponto, com o refluxo dilatando a bolsa para rompê-la e se aliviar
do peso da barriga, da continuidade, do sonho que seria partilhado não fosse o
abandono como sobra da troca.
A filha, doída, reflui seu líquido e destino no
ritmo da mãe para libertá-la do peso, imprimindo sua negação e assim apagar o
testemunho de uma história diluída na dor.
Estira-se de parede a parede procurando saída,
disposta para o doer que viesse, retorce o cordão para puxar o interior da
dilaceração da mãe, para lhe dar esperança de que dentre suas sobras ficaria
livre da mais infastiosa, aliviaria o peso de sua coluna, a dor de ninar a
sobra da própria esperança e o testemunho indesejado.
A mãe sente contração de seus líquidos e das sobras
em suas vísceras corre até a bica e sorve água fresca procurando reverter o
diluir da vida da filha, chorando-lhe que não se vá porque a dor já é instalada
e imutável, independente do seu existir.
A água escorre com dificuldade pelo esôfago até o
útero e no caminho refresca cada fissura de dor das ânsias antes vividas, vai
apaziguando e solta suas moléculas pelos atalhos necessários para acalmar
também a filha, pronta para sobrar-se.
A filha deglute lágrimas com as sobras dos goles da
mãe e as lança de volta para sua fonte através dos pulmões provocando-lhe
respirações profundas, buscadas de ar, fôlego, calma, aceitação das sobras e a
mãe, por sua vez, puxa fundo o ar como uma afogada na dor e aspira mais, coração
bate mais forte, esperança forjada goteja dos poros com os suores, cansaço se
esvai e vai e, vem o sentir menos fraca de dor, passa a mão na barriga
entortada para o lado, que permanece prenha e conformada com as sobras.
Levanta-se, ajeita a filha conformando-a com sua
coluna e vai apanhar a resto de lenha para guardar no borralho.
Logo depois, ambas aquietam-se, aquecendo-se como se
a friagem fosse apenas da tardinha de inverno….